olhar de desejo e desejo de olhar em stalker, de tarkovski
16 May 2016

Ao analisar o filme Stalker de Andrei Tarkovski, buscarei encontrar relações entre tecnologia (civilização), subjetividade (olhar/desejo) e natureza, como a nomeamos. Stalker é um complexo jogo de luz e sombras em que Tarkovski faz “pintura” através do cinema. Cada espectador fará uma leitura particular do que se apresenta na tela. Este jogo de luz e sombras em preto e branco remete à leitura de uma infinidade de interpretações, evidenciando que para cada sujeito há um tipo singularíssimo de olhar. Imagens nas paredes parecem ganhar relevo, criando as mais imprevistas “ilusões de ótica”. Magia, tecnologia e imaginação. Este filme está classificado como um clássico da ficção científica. Eu diria que não é fácil classificá-lo. Contudo, sua força reside numa reflexão filosófica sobre a subjetividade humana e suas relações com a tecnologia e a natureza.
O mundo que se nos apresenta é um mundo em ruínas. Restos de uma civilização sem esperança. A água, elemento natural, neste filme, é quase uma personagem. Verdadeiras cachoeiras se alternam ao som particularmente tenebroso de gotas d’água que não cessam de cair num ritmo lento, porém, persistente. Este ritmo nos sugere uma água que, lentamente, vai minando tudo até alcançar a “alma” humana.
Stalker se estrutura na aventura singular de três personagens: o Escritor, o Professor e o Stalker que os levará a atravessar um mundo perigoso, imprevisível e cheio de armadilhas. Este mundo leva o nome de “zona” e é o resultado da suposta queda de um meteorito que destruiu uma pequena cidade. A “zona”, como a define o Stalker, “é um complexo sistema. Às vezes caprichosa. Parece só aceitar os que já perderam todas as esperanças”. Quando as três personagens entram nesse mundo estranho e perigoso, ficamos perplexos com o contraste entre o mundo “real” em que vivem as personagens e esse “outro mundo”, supostamente irreal. Neste filme, o mundo “real” parece artificial, dada a frieza de suas instalações industriais em decadência, e a “zona”, mundo fantasmagórico, assustador e imprevisível, que parece o lugar mais natural do mundo. De fato, na “zona” a natureza impera. A imagem de grandes áreas verdes, de florestas e cachoeiras, contrasta fortemente com o mundo sombrio e sem vida em que vivem as personagens. A “zona” é a invasão de uma natureza que domina restos de uma civilização que dá índices de ter sido avançada tecnologicamente. Observamos restos de automóveis, de máquinas, redes de instalação elétrica, armas, moedas, tudo mergulhado em muita água que vai devorando tudo. Sob a água podemos ver o que já foi um antigo piso em mármore branco e preto, lembrando a imagem do piso de antigos e luxuosos palácios.
O objetivo dos três personagens é chegar ao “Quarto”, lugar que, se alcançado, premiará os viajantes com a realização de seus mais íntimos desejos. Apenas os “stalkers” não estão autorizados a entrar no “Quarto”. Devem limitar-se a guiar até lá seus eventuais clientes. O filme nos indica que o “stalker” já levou até lá multidões de desesperados. O desespero de tudo parece ser a condição para que se consiga chegar ao “Quarto” com vida. Aqui é o desespero que move os viajantes a atingirem seu alvo. Não podemos deixar de relacionar esta atitude com uma atitude religiosa. Esta viagem lembra um sacrifício oferecido, neste caso à “zona”, para obtenção de uma graça oferecida em troca do próprio sacrifício.
O Escritor é um escritor de sucesso, rico, adorado por seus leitores e perseguido pelas mulheres. No entanto, aparece pela primeira vez lamentando-se de que, no mundo, tudo é enfadonho. Não há nada, diz ele, “nem telepatia, nem fantasias, nem discos voadores, nada disso existe... as leis que regem o mundo não sabem violar-se a si próprias” [grifo meu]. Este personagem será, do início ao fim do filme, o mais cético. Acha que foi interessante viver na Idade Média, em que “cada casa tinha um duende, cada igreja, um Deus”. Sabe que o homem está só no universo e diz que tudo se reduziu ao “triângulo ABC, semelhante ao triângulo A’B’C’, fazendo uma interessante ironia ao lugar que, atualmente, ocupa a ciência, ao dizer que “se Deus é o tal triângulo, então já não sei mais nada”. Ao longo de todo o filme este personagem ironiza constantemente a ciência, através das sátiras que lança ao Professor e seus instrumentos tecnológicos. Evidencia-se aí, uma relação entre tecnologia e religião. O Professor é um cientista, no entanto, o mais cético dos cientistas tem a sua fé: ele crê na ciência como se a ela coubesse salvar a humanidade de todos os seus males. A oposição entre o Escritor e o Professor se dá, fundamentalmente, neste ponto. Em Stalker, o cientista é um crente e o artista um cético. A ele caberá abrir um caminho seguro através da “zona”.
Em A Gaia Ciência, Nietzsche ataca ferozmente toda forma de “ciência” que deu origem ao conhecimento humano. Defendendo que, necessariamente, partimos de pressupostos falsos, não podemos chegar a um conhecimento que não seja inventado, imaginado para “dar um sentido” ao mundo. Para Nietzsche esse sentido, em si, não existe: “Damos um sentido ao criar valores e aprendemos a dar sentido, negando a força dos impulsos no conhecimento e levando em conta a maior ou menor utilidade de um conceito”. Não há uma Verdade a ser desvelada, porque todas as nossas “verdades” são construção, invenção, ficção (um fantasma?). Sem esta “verdade inventada o homem se perderia no vazio, daí a necessidade de crença de que sofre o homem e que Nietzsche denuncia. Quando esta visão de mundo faz da própria ciência um objeto de estudo, Nietzsche põe abaixo a própria ciência como lugar da verdade. Se a ciência busca uma verdade final, o filósofo vê nisso uma comédia. Para ele, a única verdade final é a morte.
Sobre “nossas verdades”, diz Lacan em Televisão: [...] “apenas o fantasma com que se sustenta certo tipo de pensamento, o que é uma realidade, certamente”. “O fantasma”, diz Lacan, não é real, mas é uma realidade. Esta ficção, nós a construímos interpretando, criando valores e “dando sentido” a nosso próprio ser.
Esse sentido é o que buscam, apesar de suas diferenças, o Escritor e o Professor em Stalker. Apesar de saber que “o sentido” não existe, o Escritor famoso está entediado e insatisfeito. Busca na “zona” uma possível “inspiração”. O Professor tem o secreto intuito de destruir a “zona” com uma bomba de vinte quilotons construída por ele próprio. Acredita nos poderes maléficos provenientes de um tal lugar, capaz de arrastar multidões mal intencionadas. A tecnologia faz aí, através da bomba, o papel de um Deus salvador da humanidade. Segundo o Stalker o que o Professor quer é destruir a esperança. Note-se que “a esperança” é sempre colocada fora do homem, é algo que deve vir de fora para salvá-lo. Quando o Professor está a ponto de destruir o “Quarto”, sua crença se desfaz. Destruir a “zona” deixa de “fazer sentido”.
Não sabemos se o “Quarto” realiza os desejos de alguém, mas é evidente que mantém vivo o desejo do Stalker. Ele confessa não poder entrar lá, no entanto, em nenhum momento notamos que ele tenha qualquer interesse nisso. Quando questionado sobre isso, no início do filme, apenas diz: “Sinto-me bem sem isso”. E ainda; “Esta é a minha vida, a minha dignidade, a minha liberdade”. Sua angústia ao perceber que já ninguém acredita no “quarto” denuncia seu mais insondável desejo: conduzir pessoas até lá. Ele o faz com prazer, com vontade. Cada viagem através da “zona” é um novo desafio, completamente imprevisível. Se diz um prisioneiro e, ao final, revela-se o único livre. Tanto o Escritor como o Professor perseguem uma finalidade que está sempre adiante deles, o Stalker é movido por uma causa que o empurra. Se a “causa” que move o Escritor e o Professor é o desespero, a causa do Stalker é causa de desejo. Quando o Escritor põe-se a discutir com o Professor sobre o “altruísmo da arte” como uma causa para sua existência, o Stalker pergunta: “E a música? O que é que nos une na música? O que é essa harmonia que tem um sentido e causa [grifo meu] deleite? E acrescenta: “Tudo tem o seu sentido. O seu sentido e a sua causa” [grifo meu]. Cabe aqui, uma frase de Picasso, citado por Lacan em Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Sem 11: “Eu não procuro, eu acho” (2008, p.15). O Stalker não procura nada, ele já achou. Depara-se com o que ama e aceita isso. Vejamos o que diz Lacan sobre o desejo em A Ética da Psicanálise. Sem7: “[...] o acesso ao desejo necessita ultrapassar não apenas todo temor, mas toda piedade, que a voz do herói não treme diante de nada, e muito especialmente diante do bem do outro [grifo meu]. Sabe-se o que custa avançar numa certa direção e, meu Deus, se não se vai, sabe-se por quê. Pode-se até mesmo pressentir que se não está totalmente esclarecido sobre suas contas com o desejo, é porque não se pôde fazer melhor, pois, não é uma via em que se possa avançar sem nada pagar[...] mesmo para aquele que avança ao extremo de seu desejo, nem tudo são flores” (1997, p.387). Este raciocínio está muito bem ilustrado pela “conversa” que a esposa do Stalker entabula conosco, ao final do filme: “Sabia que muitas desgraças me esperavam. Só que é melhor uma felicidade amarga, do que uma vida apagada, triste”. Tanto ela quanto o Stalker não cedem de seu desejo, com todo o preço a pagar por isso. Por isso, não precisam do “Quarto”.
Assim, chegar ao “Quarto” em Stalker é, finalmente, chegar a dar um sentido definitivo para a existência. Que força moveria o homem se todos os seus desejos fossem satisfeitos? Nenhuma. Só lhe restaria a morte. É interessante observar que diante da entrada do “Quarto”, o Escritor e o Professor recuam. Por que não entram? O que, finalmente, percebem?
A última cena que temos dentro da “zona” é bastante intrigante. Podemos ver mergulhados na água, entre outros dejetos e sobre um fundo de mármore, a bomba do Professor, da qual se aproxima um peixe que brinca com ela. A imagem é invadida por uma súbita mancha negra que vai criando estranhas imagens que finalizam com o que parece ser a imagem de um outro peixe, ou ainda a imagem de um rosto. Evidencia-se aí a oposição entre tecnologia e natureza. Ou ainda, natureza e civilização. No entanto, de ambas emana uma estranha magia. Dentro da “zona” a natureza parece ser a vencedora, no entanto, somos surpreendidos, em meio a uma discussão entre o Escritor e o Stalker por um absurdo toque do telefone que, aliás, o Escritor, mecanicamente, atende. Era engano, mas o aparelho funciona em meio às ruínas de uma civilização. O Escritor acende a luz e encontra, ainda, ótimos comprimidos para dormir. A “zona” é assombrada pelo fantasma da tecnologia. Esse fantasma é a súbita presença do mundo “real”, fora da “zona”. Stalker parece nos revelar nossa própria relação com o cinema, com o imaginário. Ao assistirmos ao filme também mergulhamos numa outra zona. Segundo Erick Felinto em A Imagem Espectral – Comunicação, Cinema e Fantasmagoria Tecnológica: “O que a experiência das percepções cotidianas continuamente nos suprime é o que se revela nas imagens cinematográficas: o elemento fantasmagórico da realidade em que vivemos” (2008 p.129).
Finalmente, a última cena do filme remete ao olhar. Aliás, o filme todo remete ao olhar e aos infinitos modos de ver. A tecnologia do cinema é uma tecnologia do olhar. A cena final me faz lembrar a imagem do túnel “triturador de carne” que, em certo momento parece um olho que nos olha, ou uma câmera apontada em nossa direção. Ao fundo, um rosto de mulher, num estranho jogo de espelhos. Neste momento, olho e sou olhada.
A pequena menina, filha do Stalker, mutante e sem pernas usa um grande xale amarelo dourado, que lhe cobre toda a cabeça. É o único elemento colorido do mundo fora da “zona”. Ao final, após a leitura do livro, mostra-nos o poder de seu olhar. Que poder é esse que se desloca das pernas para os olhos? A menina pode mover copos com o olhar. Esse elemento mágico sofre a interferência do ganido do cão trazido da “zona”. A natureza, representada pelo cão, interfere nesse novo olhar todo poderoso e mágico, lembrando-nos que o olho da câmera sofre a interferência de nosso olhar. Cria-se aí uma relação entre olhar, tecnologia e magia. Evidencia-se o desejo de olhar e o olhar do desejo.
“... Como teus olhos minha amiga, e a chama radiante que neles dança, quando por um instante fugaz eles se erguem e teu olhar voa célere como relâmpago no céu. Mas há um encanto mais poderoso ainda nos olhos voltados para o chão, no momento de um beijo apaixonado, quando brilha por entre as pálpebras baixas a sombria, obscura chama do desejo”. (voz que encerra Stalker, de Tarkovski).
REFERÊNCIAS
FELINTO, Erick. A Imagem Espectral – Comunicação, Cinema e Fantasmagoria Tecnológica. São Paulo: Ateliê Editorial, 2008.
LACAN, Jacques. Televisão. Paris: L’Institut National de L’Audiovisuel – Les Editions du Seuil, 1974, 1 DVD.
LACAN, Jacques. A Ética da Psicanálise – Sem. 7. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
LACAN, Jacques. Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

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