butler e foucault repensam a sexualidade | andré duarte 22 jun
23 Jun 2016









Nas últimas décadas temos acompanhado o crescimento, multiplicação e progressiva visibilidade de discursos e práticas de militância que discutem questões relacionadas à sexualidade e ao gênero. Vivemos hoje os desdobramentos das diversas ondas do feminismo - desde sua primeira expressão, de luta por direitos civis e políticos, até o feminismo interseccional, para o qual não é possível pensar o gênero sem articulá-lo com outras categorias, a exemplo de classe e raça -, passando pelos movimentos LGBT e trans*. Constituem-se como movimentos e discursos heterogêneos, por vezes fundamentados na noção de empoderamento e identidade, mais ou menos essencialistas, outras vezes herdeiros de tradições que buscam problematizar a própria noção de identidade dos sujeitos políticos, tais como o pós-modernismo e a teoria pós-colonial.
De todo modo, temos testemunhado a multiplicação de vozes e corpos que nos apontam para uma radical subversão do modo como compreendíamos o sexo e o gênero e que denunciam os limites das categorias de inteligibilidade que tradicionalmente nos orientaram.
Por que discutir isto em um Espaço de Psicanálise? Acreditamos que estas mudanças não são sem consequências para a clínica, na qual recolhemos os efeitos desse tempo em que as possibilidades de semblantes e da gramática sexo-gênero-desejo-práticas multiplicam-se. Da mesma forma, notamos que a teoria com a qual operamos não é neutra; ela engendra efeitos materiais e produz um certo tipo de ética, técnica, intervenção, direção de tratamento, cujos efeitos precisamos permanentemente interrogar.
Sabemos que a psicanálise, desde sua origem, propõe como questão de que modo tornamo-nos homens e mulheres. Segundo Freud, tratam-se de destinos psíquicos que pressupõem uma operação por ele nomeada como Complexo de Édipo. Desde que o propôs, foram muitos os debates e críticas, nomeados por Lacan como «a querela do falo». Autores como Karen Horney, Ernst Jones e Melanie Klein criticaram a redução que Freud teria feito do falo, enquanto categoria simbólica, ao pênis e, ainda, à impossibilidade que o autor teria de pensar a especificidade do feminino, na medida em que pensado a partir de um único parâmetro, o fálico.
A título ilustrativo, pode-se mencionar o posicionamento de Simone de Beauvoir em O segundo sexo, obra seminal dos estudos feministas, em que afirma que « Freud não se preocupou muito com o destino da mulher; é claro que ele calcou sua descrição sobre aquela do destino masculino, do qual limitou-se a modificar alguns traços » (Beauvoir, p. 81). A mesma autora, no entanto, reconhece « o imenso progresso que a psicanálise realizou» ao « considerar que nenhum fator intervém na vida psíquica sem estar revestido de um sentido humano » (Beauvoir, p. 80).
Com efeito, Freud introduziu uma subversão nas explicações que circulavam, segundo uma lógica dicotômica, entre natureza e cultura, sobretudo com a formulação do conceito de pulsão. Isso permitiu a abertura de novas possibilidades de reflexão em diferentes campos. Ao postular que a identidade sexual não é pré-estabelecida, visto que construída segundo as vicissitudes que marcam a experiência de cada um, Freud abriu a possibilidade de pensar a diferença sexual não como uma essência ou um dado da natureza. Graças a essa desbiologização da sexualidade humana e ao reconhecimento de um sujeito dividido, atravessado por uma dimensão desconhecida a ele mesmo, e às contribuições de Lacan para pensar o sexual a partir das noções de significante, real e gozo, a psicanálise tem interessado fortemente ao feminismo e aos Estudos de Gênero.
Esta interlocução funda-se, ao mesmo tempo, no reconhecimento das contribuições provenientes do campo da psicanálise e por uma forte crítica a alguns de seus aspectos, a exemplo do suposto caráter falocêntrico e heteronormativo, bem como ao binarismo que muitas vezes continuam a ser atribuiídos a Freud e aos psicanalistas que o sucederam, como Lacan. Os dois autores dos quais nos ocuparemos hoje, Michel Foucault e Judith Butler, são grandes interlocutores e críticos -no melhor sentido da palavra - da psicanálise. A proposta deste encontro e daqueles que o seguirão dedicados a pensar esta questão é a de discutir suas formulações e que, assim, possamos sustentar a abertura e crítica necessárias para que se preserve o vivo da teoria e prática.
Deste modo, não se trata de construir sínteses e consensos, aplainando as diferenças próprias de cada discursividade. Nossa aposta é a de que interessa sobretudo sustentar estas diferenças e que esse mútuo tensionamento pode permitir, tanto aos Estudos de Gênero quanto à Psicanálise, avançar nas questões próprias da nossa época.
Texto de introdução ao encontro coordenado por André Duarte, de autoria de Maria Carolina Schaedler

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